Divulga-se o artigo “Concentração e Centralismo do Estado na Raiz da Crise da Habitação“, dos Professores Óscar Afonso e Francisco Figueira de Lemos, publicado no Público em 6 de maio de 2025.
Abaixo, transcreve-se o texto com a devida autorização dos autores:
“Concentração e Centralismo do Estado na Raiz da Crise da Habitação
Com a aproximação das eleições, é inevitável que a crise da habitação ocupe um lugar central no discurso de campanha. Multiplicar-se-ão os debates sobre a pressão habitacional em Lisboa e no Porto, onde os preços dispararam, a oferta escasseia e a classe média é empurrada para os subúrbios. Ouvir-se-ão também considerações sobre a deterioração da qualidade de vida nas duas áreas metropolitanas, agravada pelo aumento das distâncias de deslocação, pelos elevados custos de transporte e pelo stress do trânsito diário. Surgirão ainda preocupações que vão desde a segregação entre quem pode ou não pagar, até à crescente afetação da habitação a fins turísticos ou ao usufruto de residentes não habituais.
Ouvir-se-á tudo isto da parte dos líderes políticos como se fosse um problema estrutural e transversal ao país. Como se este cenário se repetisse em cidades como Portalegre, Guarda, Bragança ou Castelo Branco. Como se, nesses locais, a população fosse obrigada a viver nos subúrbios por falta de habitação nos centros, enfrentando transportes sobrelotados ou deslocações superiores a uma hora em filas intermináveis. Tudo isto será dito sem se reconhecer que, no interior, bastam 10 minutos para atravessar uma cidade, que os poucos transportes públicos circulam com lugares vagos, ou que há quem opte por viver nos subúrbios, não por imposição, mas por procurar – e encontrar – melhor qualidade de vida.
A crise da habitação não é, verdadeiramente, um problema nacional. É, sobretudo, um fenómeno concentrado nas áreas metropolitanas, com expressão máxima na capital. Não se resolve com construção desenfreada em Lisboa e no Porto. Pelo contrário, a edificação indiscriminada nestas cidades agrava a sobrecarga das infraestruturas e acelera a degradação da qualidade de vida. O desequilíbrio entre a procura e a oferta no mercado habitacional português resulta, acima de tudo, da falta de coesão territorial – e não da escassez global de habitação.
Os Censos de 2021 revelam a existência de cerca de 730 mil habitações desocupadas em Portugal. Em termos proporcionais, a maioria situa-se no interior do país. Enquanto nas áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto a taxa de desocupação ronda os 10%, em muitas zonas do interior ultrapassa frequentemente os 30%. Estas regiões enfrentam um acentuado declínio demográfico e envelhecimento populacional, agravados pelo afastamento progressivo de serviços públicos e privados. Nestes territórios, o problema não é a falta de habitação, mas sim a escassez de emprego qualificado e de oportunidades.
A crise da habitação não se resolve com mais betão. A solução é evidente, mas a miopia do centralismo político impede o reconhecimento do essencial: o país precisa de se redistribuir. De reequilibrar população, emprego e habitação. De se desconcentrar e descentralizar. O verdadeiro problema é, antes de tudo, político.
A desconcentração da administração pública central é uma medida tão evidente quanto sucessivamente adiada. Não há razão objetiva para que a maioria dos organismos do Estado – direções-gerais, institutos, agências, autoridades reguladoras – continue concentrada em Lisboa. Esta concentração sobrecarrega infraestruturas, transportes e o mercado habitacional da capital. É uma opção ineficiente, injusta e, sobretudo, insustentável.
A par da desconcentração, é essencial reforçar a descentralização de competências do Estado central para os níveis administrativos inferiores. Esta transferência permitiria distribuir de forma mais equilibrada serviços e funcionários públicos, ajudando a aliviar a pressão habitacional nos centros urbanos. A gestão pública tende a ser mais eficaz quando realizada ao nível onde os problemas surgem, conforme o princípio da subsidiariedade. Este estabelece que uma instância superior só deve intervir quando a inferior não tem capacidade para agir eficazmente, assegurando decisões tomadas o mais próximo possível dos cidadãos.
Em Portugal, esta lógica está invertida. O país apresenta o 7.º valor mais baixo da União Europeia no que respeita à despesa pública regional e local, tanto em percentagem do PIB (6,5%) como no total da despesa pública (15,4%, em 2023). Ambos os indicadores ficam muito abaixo das médias europeias – 17% e 34,5%, respetivamente – já ajustadas para incluir os níveis estaduais/intermédios de países como Alemanha, Áustria, Bélgica ou Espanha. Estes dados revelam um centralismo excessivo no modelo de governação português.
Paralelamente, as regiões Norte e Centro – entre as que mais fundos europeus receberam entre 1993 e 2020 – continuam a apresentar os níveis de vida mais baixos do país, medidos pelo PIB per capita em paridade de poder de compra. Tal demonstra que, sem um processo efetivo e profundo de descentralização, os desequilíbrios regionais tenderão a persistir – e, nalguns casos, a agravar-se.
Não basta prosseguir com os atuais processos de descentralização para juntas de freguesia, autarquias e CCDRs. Para que a descentralização seja suficiente e eficaz, é indispensável dotar o território continental de capacidade de planeamento e gestão à escala regional. Tal é particularmente relevante em áreas como transportes, saúde, educação ou coesão económica, onde, por razões de eficiência e racionalidade, a governação intermédia se revela mais adequada.
A Suécia é frequentemente citada como exemplo de descentralização bem-sucedida – e com razão. Nos anos 1970, o país transferiu diversos organismos da administração central para cidades médias do interior. Esta estratégia foi acompanhada por uma descentralização consistente, com novas competências atribuídas aos municípios e reforço dos respetivos orçamentos. O resultado foi positivo: criação de emprego qualificado, atração de novos residentes para regiões menos densas e alívio da pressão sobre Estocolmo. A despesa pública deixou de estar concentrada na capital e passou a beneficiar, de forma mais equitativa, todo o território.
Em Portugal, a desigualdade na distribuição de oportunidades é um dos principais bloqueios estruturais ao desenvolvimento equilibrado – e está na origem de múltiplos problemas, incluindo a crise da habitação. Resolver esta questão exige atacar a sua raiz.
Num contexto político mais favorável – ultrapassado o atual ciclo eleitoral – deve ser ponderada, com rigor técnico e político, uma reorganização territorial do Estado. Esta deverá incluir, sempre que se justifique, a racionalização do mapa administrativo, com a fusão ou eliminação de freguesias e concelhos, e a criação de regiões administrativas previstas na Constituição.
O objetivo não deve ser criar mais um nível de administração, mas sim reorganizar o território de forma mais racional, eficiente e funcional. Trata-se de construir uma estrutura com maior escala e melhor capacidade de planeamento, que permita uma gestão pública mais eficaz, próxima das populações e com uso mais inteligente dos recursos disponíveis.
Para isso, é essencial um debate nacional alargado, transparente e participado, que permita construir uma proposta amplamente consensual. Em paralelo, será decisivo demonstrar, com clareza e evidência, os ganhos de eficiência e a capacidade reformista do Estado – condição indispensável para ultrapassar os receios, legítimos, que ainda persistem desde o referendo de 1998.
A crise da habitação é um problema com solução. Falta apenas vontade política para a concretizar.”
